domingo, 1 de setembro de 2024

COMO ESCOLHER UMA CANÇÃO DE NINAR



Logo nos primeiros dias, em uma impressionante lição de humildade, o pai descobre que é um corpo estranho. Para o bebê, há a fonte da vida, o centro primordial de acalanto, a ponte com tudo o que se conhece do mundo, o sentido final da existência. Isto é, evidentemente, a mãe. O pai, com sorte, é o seu acessório.

Como todo bom acessório, é fundamental que o pai descubra maneiras de ser útil. Ele deve incorporar o seu canivete suíço interior e se desdobrar no maior número de atividades possíveis. Aprender a colocar fraldas que não vazam, enfiar mãozinhas, cada dia mais espertas, em mangas estreitas, esterilizar utensílios, coordenar planilhas de amamentação, fiscalizar o paradeiro de bicos de silicone. Além de toda a sorte de tarefas domésticas, que, espera-se, ele já sabia executar antes de se tornar pai.

A rotina de acessório também tem seus momentos de glória. Intimado a carregar sua cria, o pai sente o bebê adormecer, ouvindo a batida do seu coração. Isto dura mais ou menos trinta segundos. Serão os melhores trinta segundos da sua vida.  Até que o próximo choro começa. E aí vem um grito, digno de Munch, vocalizando todo o desespero que um ser pode sentir. E as mãozinhas que tentam se afastar do seu corpo, a todo o custo. Freud poderia ter escrito um livro inteiro sobre o desamparo paterno, se tivesse alguma vez, largado o charuto, para segurar seus rebentos.

Assim, o pai descobre que irá fazer tudo o que está ao seu alcance, para que esses trinta segundos possam durar um pouquinho mais. Ele reza, troca o bebê de posição, aprende a dar o leite materno em uma colherinha anatômica, desenhada pela Nasa. Tenta se aperfeiçoar na arte de escolher canções de ninar, mesmo alertado pela ciência pediátrica, de que no primeiro mês de vida, o bebê não compreende uma única palavra.

Mas quem sabe, o bebê não entenda as entonações? Pensa o pai, esperançoso. Os sentidos ocultos que colocamos nos versos, sem perceber. Não seria essa, afinal, a linguagem anterior, que os poetas querem despertar? Não é essa a tarefa dos compositores? Escolher palavras, que transcendam a si mesmas, quando entoadas em canções. 

Na dúvida, escolho um samba enredo antigo da Portela (para marcar minha posição minoritária, já que a criança tem mãe, avô, avó e madrinha mangueirenses), “O Mundo Melhor de Pixinguinha”. Desacelero o andamento e canto apenas o refrão para minha filha. “Pizindin, Pizindin, Pizindin. Era assim que a vovó, Pixinguinha, chamava. Menino bom na sua língua natal. Menino bom que se tornou imortal. A roseira dá rosa em botão. Pixinguinha dá rosa canção. E a canção bonita é como a flor. Que tem perfume e cor.”  Melhor que Tutu Marambaia!

Ou aproveito que você nasceu leonina e canto. “Gosto muito te de ver leãozinho, caminhando sobre o sol...”  Ou, mesmo, arrisco composições próprias, como a “melô da foca fofoca”, ou, nos dias mais difíceis, o “pacotinho de brabeza”. Nessa hora, o pai delira um pouquinho. Imagina que inventou a nova galinha pintadinha e vai poder pagar todos os seus estudos, com que vai receber de direitos autorais.  

Também volto para minha infância, para perto do mar de Angra, que inspirou o seu nome, Marina. E canto, bem baixinho, o “Hino do Revolucena”, grupo de teatro de rua, da qual fizeram parte minha mãe, meu pai e meu tio. “Nem vento, nem temporal, nos impede de entrar em cena. Senhor e nem senhora, nos apavora. Estamos, a todo vapor, tocando nosso barco com muito amor. Vamos estender nosso poema, o nosso barco é o Revolucena.”  Ou o “Semba dos Ancestrais”. Eu sei que a música é do Martinho, mas conheci pelo PC e em algum lugar da minha cabeça sempre será do PC. E para acalmar o seu choro, para me acalmar durante o seu choro, digo, como numa reza. “Podes crer, no axé dos seus ancestrais. Podes crer no axé.”

O pai logo percebe o óbvio, que escolhe canções, mais para a si mesmo, do que para a sua filha. Então, desprovido de culpa, ele começa a cantar “O Caderno”, do Toquinho.  É uma poderosa metáfora da paternidade (também um jingle de um comercial de lápis de cor), em que o pai aparece transfigurado na figura de um caderno, prestes a ser usado pela primeira vez. Tudo cabe naquela canção. A vontade de estar sempre presente. “Sou o que vou seguir você dos primeiros rabiscos até o be a bá”; a pretensão de ser o melhor amigo da filha: “Serei de você, confidente fiel, se teu pranto molhar meu papel” e até o medo de um dia ser esquecido: “só peço a você um favor se puder, não me esqueça num canto qualquer.”  

Mãe corre aqui. O pai começou a chorar mais que a criança.


A PRIMEIRA RIMA

  Espremida entre o meu colo e a grade da janela, Marina se agita. Olha para baixo e grita: ruuuua. Uma, duas, três vezes. Depois olha para ...