Quando eu era um jovem e intrépido universitário, há mais ou menos uns 15 anos, tive uma coluna num blog que se chamava “Crítica de cinema do Galvão”. Acaso o título não seja auto-explicativo o suficiente, desenvolvo por aqui. Eram resenhas de filmes publicadas por um Galvão Bueno imaginário. As críticas imitavam a verborragia, as expressões e o ufanismo invencível do narrador do tetra e do penta. Eram sempre variações de uma mesma piada. Eu pegava um filme estrangeiro festejado pela crítica e esculhambava, comparando a um similar nacional, que teria feito a mesma coisa, só que melhor.
Um dos meus textos favoritos comentava o filme argentino “Segredo dos seus Olhos”, vencedor do oscar de melhor filme estrangeiro de 2010. Galvão, claro, ficou uma arara. “E argentino sabe lá fazer filme de ditadura que nem a gente? Por acaso, eles já botaram o Agostinho Carrara para sequestrar o embaixador americano com ajuda do Rui e da Vani?” A referência era sobre o filme “O Que é isso companheiro?”, de Bruno Barreto, baseado no livro de Fernando Gabeira.
Um drama tenso e bem executado sobre uma ousada ação da guerrilha durante a ditadura militar, que contava com algumas escolhas de casting pouco ortodoxas. Tinha Pedro Cardoso no papel de um guerrilheiro (Gabeira) e Lulu Santos como um delegado de polícia. Hoje um tantinho esquecido, o filme concorreu ao Oscar, em 1998. Entrou na condição de favorito, com transmissão em clima de Copa mostrando os atores reunidos no Canecão. Pelo menos, rendeu um chilique anti-imperialista, ao vivo do Arnaldo Jabor, que comentava o evento na Globo. Não foi dessa vez, Brasil.
Ingressei na faculdade de Comunicação Social pela UnB em 2006. Era um período de mudanças profundas no audiovisual. Quando eu entrei na faculdade, os alunos que estavam lá, sonhavam no dia em que filmariam em película. No meu último ano, os calouros que entravam faziam plano de carreira para serem youtubers. O curso de audiovisual tinha um apego, para alguns: justo, para outros: exagerado, ao Cinema Novo. A coluna do Galvão foi inspirada em um professor que, ao ouvir os alunos reclamando da overdose de Glauber e Nelson Pereira dos Santos, costumava responder. “Vocês vão aprender mais assistindo a um filme brasileiro ruim, do que a um filme americano bom.” Ele, claro, era inglês.
Oficialmente, eu achava a frase absurda. Como estudar cinema sem “Cantando na Chuva”, “Pulp Fiction” ou “Poderoso Chefão”? Mas havia uma parte de mim que concordava. Afinal, toda paródia que se preze é, no fundo, uma homenagem sincera. Fui muito feliz nas madrugadas do Canal Brasil. Aprendi a ignorar as filmagens mambembes, as cenas de nudez inexplicáveis, os diálogos que pareciam dublados e que podiam oscilar entre a telenovela e o teatro de vanguarda. Apreciava as dores e delícias do nosso cinema, pelo simples fato de ser nosso.Porque nós somos o olhar de desespero tarado do Peréio, o sorriso de deboche da Leila Diniz, os cangaceiros giratórios do Glauber, o andar de tigresa da Sônia Braga, a bunda do José Wilker descendo o Pelourinho, cada um dos convidados do Baile do Bené, a Fernanda Montenegro catando feijão para o almoço do dia seguinte, o Grande Otelo recém-parido no chão da oca, gritando unhéee.
Domingo, durante a transmissão do Oscar, na torcida por Fernanda Torres e por “Ainda Estou Aqui”, pretendo reencarnar meu antigo personagem. Vou dizer coisas como: “Bem amigos do cinema brasileiro. Haja coração! Hoje, enfrentamos um velho adversário: a França. Após se cansarem de fazer filmes que mais parecem uma partida de futebol com 90 minutos de comentários ininterruptos do meu amigo Casagrande, os franceses foram ardilosos. Fizeram o que fazem sempre. Roubaram os talentos dos outros países para brigarem pela taça. Mesmo que Emília Pérez pareça mais uma trama requentada de outra Perez, a nossa Glória, eles chegam com pinta de favoritos. De um lado, temos Jacques Audiard e todo o poderio da Netflix. Do outro, o nosso Waltinho Salles, apenas um rapaz latino americano, sem din... Bem, o resto da música não combina tanto assim. Mas eu confio na virada e na estrela solitária de Waltinho. E nossa Ferrrrnanda Torres. Irá desbancar as estrelas de Hollywood e sambar na apoteose do cinema, ao som do Rappa cantando Vapor Barato?”
Bora Brasil, que dessa vez o caneco é nosso.