sábado, 3 de maio de 2025

A PRIMEIRA GRIPE

 



Tem uma cena famosa no “Godfellas”, o filme que inventou o jeito Martin Scorsese de fazer filmes de máfia, em que o aspirante a gângster, ainda adolescente, dá um vacilo e é preso pela primeira vez. No dia do julgamento, seus comparsas aparecem.  Ao invés de ameaças e reprimendas, o garoto recebe felicitações e tapinhas nas costas de um sorridente Robert De Niro. O recado era claro. Para quem seguia aquele caminho, a prisão era inevitável. Não era uma questão de se, mas de quando iria acontecer.  Parte do seu valor como bandido estava na forma como você atravessava esse calvário. A cadeia era um rito de passagem. 

“Godfellas” foi um dos poucos filmes que vimos no mês passado, dividido em duas parcelas de 1 hora dos cochilos vespertinos da Marina. A cena ressurgiu na minha cabeça, dias depois, quando enfrentamos um difícil rito de passagem do mundo dos pais: a primeira gripe do bebê. 

Começou no feriado de Páscoa, a mãe teve tosse e febre no sábado. A bebê teve tosse e febre no domingo. Passou a segunda e terça-feira meio amuada, melhorando com tylenol. Na quarta, amanheceu sem febre, brincando, dando estridentes gritos de alegria ao atacar seu feijão com carne moída na hora do almoço. Mas tal qual o Botafogo no Brasileirão de 2023, o acender da esperança serviu apenas para intensificar a dor da desolação. Na quarta à noite, o termômetro marcava 39.4. O tylenol parecia não fazer mais efeito.

Nossa bebê engatinha correndo, escala móveis, dialoga com gritos de diferentes tonalidades, toca seu chocalho e se balança toda, quando escuta “Tambor”, samba-enredo do Salgueiro de 2009. Mas naquela noite, Marina parecia retornar as suas primeiras semanas de vida. Não queria comer, só mamar. O seu variado repertório de sílabas e ruídos foi trocado por um choro enfraquecido. Ela mal conseguia se mexer. Movia apenas os olhos, para expressar sua dor e nos encarar com muda perplexidade. Por quê?

Entre choros, lavagens de soro e um termômetro que teimava em subir com sua precisão implacável, fomos assombrados pelos fantasmas das decisões passadas. Um multiverso particular de pequenas ações que, em meio ao nosso desespero, pareciam ter o poder de evitar a gripe. Se não tivéssemos viajado, se não tivéssemos ido a piscina, se tivéssemos usado máscaras, se o outono não tivesse substituído o verão. Depois, foi a vez de um passado mais remoto nos atormentar. Eu tive incontáveis crises de rinite e sinusite ao longo da vida. Dizem que todos encontram sua própria história contada em algum verso de Caetano. Para mim, sempre foi “gente quer respirar ar pelo nariz”. Para completar, minha esposa é asmática. Nossa genética lançava uma sombra sinistra a cada espirro da nossa filha.

Perto das quatro horas da manhã, a febre voltou a romper os 39 graus. A pediatra estava marcada para as onze horas. Não conseguimos esperar. Chamamos um uber e fomos até à emergência. Na hora da consulta, a febre havia baixado um pouco. Marina estava ativa o suficiente para agarrar o estetoscópio da médica. Nossas dúvidas foram sanadas. “O pulmãozinho dela está limpo?” Estava. “Há risco de convulsão com a febre alta?” “A criança que tem tendência a ter convulsão, passa mal até com 37,5.” “E como a gente sabe se ela tem tendência a ter convulsão?”  “Vocês só vão saber se ela tiver”. Muito tranquilizador. Por fim, a pergunta definitiva. “O que ela tem?”  Marina fez o teste de Influenza e deu positivo. Gripe clássica. A bebê chorou, clamando pela mãe. Fiz quase a mesma coisa, mas por WhatssApp. 

Voltamos para casa, fechamos os olhos por algumas horas e às onze estávamos na pediatra. Resfriados ou viroses são marcados pela incerteza, podem ser causados por uma infinidade de vírus de muitos nomes. Em geral o tratamento é fortalecer o corpo e esperar passar. Mas para a gripe tem um remédio específico. Já era um começo. Minha mãe foi para nossa casa, nos recebeu com o almoço. Ajudou a cuidar da neta (e de mim), enquanto minha mulher tentava descansar um pouco para se recuperar da própria gripe e eu dava um jeito de ajeitar minha cabeça e trabalhar por algumas horas.

O remédio fez efeito, o catarro foi posto para fora. A febre se tornou mais rara e mais baixa. No dia seguinte, minha mãe podia voltar para casa. Na calçada, enquanto aguardávamos meu pai, conversamos. “Primeira gripe, é foda.” “É meu filho, não vai ser a última.”  A consciência de que uma dor é inevitável nem sempre basta para diminuir sua aflição. Cada sinal de retorno à normalidade da minha filha: um sorriso, um apetite, uma estripulia era festejado como se ocorresse pela primeira vez. Dias depois para comemorar sua cura, Marina virou todo o cesto de brinquedos sobre o seu corpo.

A prisão em “Godfellas” não parece ser um lugar tão duro. Claro que é um filme de Hollywood e aqueles personagens ocupam cargos privilegiados da máfia. Mas há um certo de ar de colônia de férias. Eles jogam cartas, contam piadas, fumam charutos, bebem vinho e uísque, preparam bifes gigantescos e macarrões com molhos intermináveis com o alho em tiras finíssimas cortadas com lâmina de barbear. Parece mais uma desculpa para aqueles homens ficarem entre si, longe de suas mulheres e filhos. Eles não sabem nada da vida.

 




A PRIMEIRA RIMA

  Espremida entre o meu colo e a grade da janela, Marina se agita. Olha para baixo e grita: ruuuua. Uma, duas, três vezes. Depois olha para ...