terça-feira, 26 de novembro de 2024

MINHA FILHA, MINHA AVÓ E MEIA DÚZIA DE FILÓSOFOS

No sábado, dia de finados, levei a minha filha para conhecer a minha avó. A mulher de 3 meses olhou para a mulher de 95 anos e ambas sorriram. Aquele sorriso era muito elementar e ao mesmo tempo um mistério. A mente da minha filha já é capaz de movimentar a boca para balbuciar pequenos sons,  fazer a mão segurar seu elefantinho de pano e sabe que quando chora mais forte é atendida mais rápido. Da mente da minha avó já desapareceram nomes, receitas, mágoas, histórias, rostos, fatos, normas, deveres.  Em compensação, os sorrisos aumentaram. Ela sorri para minha filha e minha filha sorri para ela. Por que? O que na mente delas provocava esses sorrisos sem razão?

No intricado percurso da história dos pensamentos, muitos defenderam a ideia de que a razão seria o elemento essencial do ser humano. Platão, filósofo grego amante de cavernas obscuras e diálogos luminosos, considerava a razão como a verdadeira natureza da alma, uma ponte com a nossa essência perfeita, nascida no mundo das ideias. Quando o ser e a razão não coincidiam, era culpa do corpo, essa fonte inexata de dor, desejo e ansiedade.  Seguir o caminho contrário era a missão da filosofia: alcançar a transcendência através da razão.

Dois mil anos depois de Platão, havia um soldado entediado, que estava farto de suas ideias. René Descartes servia numa cidadezinha alemã, esperando por uma batalha que não começava, quando decidiu se afastar do quartel após uma noite de febre e pensamentos confusos. Trancou-se no quarto de uma estalagem e resolveu que iria reconstruir toda a filosofia que existia até então. Começou a duvidar de tudo.   De tudo, mesmo, incluindo a própria realidade. Questionou por que aquilo que ele via não poderia ser obra de um demônio maléfico, capaz de criar uma ilusão de enormes proporções? Que certezas ele tem? O que ele poderia mesmo saber que existe? A primeira resposta que lhe trouxe satisfação foi o pensamento. Sua dúvida era um pensamento e esse pensamento existia. Se existia um pensamento, era porque deveria existir quem o pensasse. A razão era a prova fundamental da sua existência e, claro, a inspiração do seu slogan mais famoso: penso, logo existo. A partir dessa certeza inicial Descartes começou a construir o caminho para a sua filosofia, onde todo o conhecimento derivava da razão, base de todas as ações humanas.

Outros pensadores não partilhariam da mesma confiança no poder ilimitado da razão. Tanto Baruch Espinosa, um judeu de ascendência portuguesa, refugiado na Holanda, que conseguiu a proeza de ser perseguido por sua própria comunidade, como Immanuel Kant, um professor universitário prussiano que revolucionou a história da filosofia sem jamais sair de sua cidade natal, duvidavam do poder ilimitado da razão. Para eles, os seres humanos são, com frequência, governados por paixões. Parte da natureza, somos suscetíveis a essas forças violentas, como uma embarcação que fica no caminho das ondas, durante uma tempestade. Entretanto, haveria uma saída. Cultivar a racionalidade era o caminho para libertar a alma da prisão das paixões.   Escolher a razão era atender a principal vocação humana, alcançar a única liberdade possível. Entender a razão como um caminho a ser conquistado, influenciaria diferentes abordagens sobre a mente nos séculos seguintes, como a psicanálise de Freud e o existencialismo de Sartre. 

Hoje, o pensamento foi decodificado em pequenas ondas cerebrais analisadas por neurocientistas.  Com a inteligência artificial, já se discute a razão para além da vida humana, enquanto uma vida humana sem razão continua a parecer insuportável. Recentemente, o filósofo e poeta, Antônio Cícero, ao optar pela eutanásia, antes que uma doença degenerativa consumisse sua capacidade intelectual deixou uma carta de despedida: “não consigo mais escrever bons poemas, nem bons ensaios de filosofia.” Para ele, para muitos, uma vida sem razão não vale a pena ser vivida.

Minha filha abriu a boca e deu um grito suave. Minha avó beijou os seus pés. Sorriram com maior intensidade. Ficaram alguns minutos olhando uma para outra em estado de profunda felicidade. Por mais de dois mil e quinhentos anos, os filósofos viram na razão o ponto mais elevado do ser, o caminho para compreender a alma, a característica que nos define como humanos. Começo a procurar em outro lugar.


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