terça-feira, 28 de outubro de 2025

A PRIMEIRA RIMA

 




Espremida entre o meu colo e a grade da janela, Marina se agita. Olha para baixo e grita: ruuuua. Uma, duas, três vezes. Depois olha para cima e ergue o dedo na direção do céu, aponta para noite. Então, diz: luuuuua. Aguardo para ter certeza de que são mesmo termos diferentes.  Como sabe qualquer leitor do Maurício de Souza, “r” e “l” estão entre os mais traiçoeiros fonemas infantis. Ela repete as palavras. Lua olhando para cima. Rua olhando para baixo. Não há mais dúvidas. Marina fez sua primeira rima. 

Do alto do seu um ano e dois meses, já é uma conhecedora desses dois substantivos. A rua, ela aprendeu primeiro. Ora diz apontando para janela, ora para a porta. Essa descoberta ainda me impressiona. Como ela percebeu que o lugar que observa de cima é o mesmo canto onde passa sacolejando com seu carrinho?   Ambos, são tão diferentes para os sentidos, não oferecem a mesma vista, os mesmos sons, os mesmos cheiros. Ainda assim, ela notou que se trata do mesmo espaço, acessível por dois caminhos distintos: a porta e a janela.

A lua veio um pouco depois. Não moramos em uma cidade propícia a sair a noite com crianças. Foi uma daquelas luas precoces, que surgem por volta das cinco da tarde. A mãe apontou, ela repetiu. Alguns dias depois, aconteceu de novo no meu colo na porta de um bar, em um aniversário que se estendeu demais, diante de uma crescente. Por fim, repetiu o nome ao ver a lua desenhada em uma página de livro. 

A associação feita na janela era inédita. Dizer palavras soltas, tudo bem, mas assim em sequência e ainda combinando sons e sentidos... Na qualidade de pai, sou por óbvio, suspeito para falar, mas não é um feito e tanto para um bebê? Uns anos atrás, enquanto trabalhava no roteiro para uma série documental sobre Noel Rosa, aprendi com o músico e pesquisador de linguística Luiz Tatit,  que mais do que fazer uma canção funcionar, a rima tem a função de associar dois significados. Pense em “amor” e “dor” que aparecem juntos incontáveis vezes ou “andaime” e “Van Damme”, uma única vez, por responsabilidade dos Mamonas Assassinas.

As rimas ocupavam um papel fundamental nas culturas orais. Eram uma ferramenta importante para memorização dos conhecimentos, quando a maioria da população ignorava a escrita. Muitas histórias eram compostas em rimas e também os textos filosóficos e religiosos. Não havia distinção entre profetas e poetas. Ao ver a rima brotar espontânea na fala da minha filha, é natural que eu pense nela como uma forma de presságio. Um sinal para uma canção futura.  A lua e a rua...  Que papel cada uma terá na sua vida?




quinta-feira, 2 de outubro de 2025

Os Calundus de Capitu




Machado escrevia livros curtos, para não escolher palavras à toa.Se um termo fora do seu repertório habitual surgisse em um dos seus textos, decerto haveria um bom motivo para isso. Em geral, ele utilizava um português elegante e canônico, talvez mais antigo do que sua própria época, repleto de referências da cultura clássica: Dante, Shakespeare, gregos e romanos. Uma linguagem apropriada para seus narradores: homens da elite, de talento limitado, que pensavam ser mais eruditos do que eram na realidade. A fala da rua, marcante em Aluísio de Azevedo, Lima Barreto, João do Rio, não aparecia nele com muita frequência. Desconheço se alguém já fez um estudo sobre a quantidade de termos de origem africana, tão comuns na fala brasileira, utilizados em sua obra. Mas desconfio que não fossem muitos.


Assim, a palavra, quando surge em meio a leitura, chama a atenção, como um continente que desponta em pleno mar. Estamos em Dom Casmurro, nas últimas linhas do capítulo quarenta e seis, ainda no primeiro terço do romance, quando os protagonistas começavam a passar da amizade infantil ao flerte da puberdade. Bentinho e Capitu se reconciliavam após uma discussão boba de adolescentes. Eis o trecho:

O bonito é que cada um de nós queria agora as culpas para si, e pedíamos reciprocamente perdão. Capitu alegava a insônia, a dor de cabeça, o abatimento do espírito, e finalmente "os seus calundus”. 

Machado não utilizava palavras à toa. Tampouco as aspas. Havia uma razão para que, ao contrário da insônia, da dor de cabeça e do abatimento do espírito, que poderiam ser expressões típicas do narrador, o Bentinho velho e amargurado, os calundus aparecessem destacados das outras palavras, como se pudessem ser ditos apenas por Capitu. 

Recorramos ao dicionário. Há duas definições para os nossos calundus.  1) “Estado de ânimo caracterizado por mau humor e irritabilidade, e claramente manifestado pelo comportamento.” 2) “Celebrações de caráter religioso, acompanhadas de canto, dança, batuque e que geralmente representavam um pedido ou consulta a divindades ou entidades sobrenaturais.” A etimologia diz que o termo tem origem no quimbundo, idioma falado em Angola, pelo povo banto, que nomeou outras preciosidades como dengo e cafuné.  

A palavra percorre, no Brasil, um caminho interessante. Seu sentido original, o das cerimônias religiosas se diluiu em dois termos, quase opostos. “Lundu”, vai designar a dança, o ritmo musical e as celebrações. A parte festiva do rito.  E “calundus” o estado de espírito melancólico e aborrecido, talvez adequado a alguém que estivesse precisando de uma boa reza. 

A semente de um nome acrescenta nuances ao seu significado. Afirmar que uma pessoa está com calundus é diferente de apenas dizer que ela está triste ou irritada.  O termo traduz uma condição mais específica. Nos faz pensar em alguém diante de uma encruzilhada, que carrega dúvidas difíceis de explicar, ao mesmo tempo de natureza existencial e espiritual. É uma boa razão para que os “calundus” apareçam no livro, justo na fala de Capitu. Poderia haver melhor palavra para definir a introspecção de uma alma oblíqua, que nos observa com olhos profundos, capazes de nos arrastar para o fundo, como a ressaca do mar?

Mas pode ser que haja outra explicação para o fato de Capitu usar uma palavra banta. Observe como Machado descrevia a aparência da personagem, através do olhar adolescente de Bentinho:

Não podia tirar os olhos daquela criatura de quatorze anos, alta, forte e cheia, apertada em um vestido de chita, meio desbotado. Os cabelos grossos, feitos em duas tranças, com as pontas atadas uma à outra, à moda do tempo, desciam-lhe pelas costas. Morena, olhos claros e grandes, nariz reto e comprido, tinha a boca fina e o queixo largo. 

Sem dúvida, são traços mestiços. Há a boca fina e os olhos claros (mas jamais descritos como “verdes”, como tantas vezes foram retratados em capas de livros e adaptações audiovisuais, talvez por remeter a cor do mar, nos “olhos de ressaca”). Mas também uma pele “morena” e cabelos grossos, que reaparecem mais adiante, em uma das cenas mais conhecidas do livro, quando Bentinho vai penteá-los e o emaranhado conduz ao primeiro beijo do casal. Noutros trechos, quando o autor descreve algum enrubescer de Capitu, jamais compara sua cor à tonalidade europeia das maçãs ou dos morangos, mas ao marrom-avermelhado das pitangas tropicais. 

Os traços mais brancos de Capitu vinham da mãe, Fortunata, de quem Machado diz apenas que era “alta, forte, cheia” e que tinha os olhos claros e a boca iguais aos da filha. Sobre o pai, Pádua, não há uma descrição física específica, apenas uma referência feita de forma cifrada, em um diálogo entre Bentinho e o mexeriqueiro, José Dias, o desagradável agregado da família Santiago. José Dias adverte a Bentinho, que ele não deveria mais ser visto andando, com Pádua pela rua. E diz:

“Quando era mais jovem; era criança, era natural, ele podia passar por criado. Mas você está ficando moço e ele vai tomando confiança.”  

A trama se passa no Rio de Janeiro, em meados do século XIX. Um momento em que a imensa maioria da mão de obra, seja livre ou escravizada, era negra, José Dias acha desnecessário explicar porque o pai de Capitu poderia ser confundido com um criado. Por essa lógica, Capitu seria filha de um pai negro e uma mãe branca, o inverso do padrão de relações inter-raciais mais comuns no Brasil daquela.  Outra notável exceção era, claro, o próprio Machado, filho de uma lavadeira portuguesa e de um pintor de paredes negro.

Não são os únicos pontos em comum entre os dois. Ambos nasceram pobres, foram vizinhos e agregados de uma família rica, eram donos de uma intensa vontade de saber, que ao mesmo tempo, os aproximava e diferenciava da elite que detinha o acesso a esses conhecimentos, mas que tão pouco sabia o que fazer com aquilo.

“As curiosidades de Capitu dão para um capítulo. Eram de vária espécies, explicáveis e inexplicáveis, assim úteis como inúteis, umas graves, outras frívolas; gostava de saber tudo. No colégio onde, desde os sete anos, aprendera a ler, escrever e contar, francês, doutrina e obras de agulha, não aprendeu, por exemplo, a fazer renda; por isso mesmo, quis que prima Justina lhe ensinasse. Se não estudou latim com o Padre Cabral foi porque o padre, depois de lhe propor gracejando, acabou dizendo que latim não era língua de meninas. Capitu confessou-me um dia que esta razão acendeu nela o desejo de o saber. Em compensação, quis aprender inglês com um velho professor amigo do pai.” 

Um dos temas centrais de “Dom Casmurro” são as semelhanças inexplicáveis. Das muitas que aparecem no romance, pouco se foi escrito e falado sobre as que existem entre o autor e sua protagonista feminina. Seriam conscientes? Os calundus eram uma marca de origem, uma pista deste elo, deixada para a posteridade? Ou se manifestaram como uma força subterrânea em meio ao processo de escrita? Machado não escolhia palavras à toa. Mas poderia ter os seus lapsos. E, por que não, seus calundus.



A PRIMEIRA RIMA

  Espremida entre o meu colo e a grade da janela, Marina se agita. Olha para baixo e grita: ruuuua. Uma, duas, três vezes. Depois olha para ...