Espremida entre o meu colo e a grade da janela, Marina se agita. Olha para baixo e grita: ruuuua. Uma, duas, três vezes. Depois olha para cima e ergue o dedo na direção do céu, aponta para noite. Então, diz: luuuuua. Aguardo para ter certeza de que são mesmo termos diferentes. Como sabe qualquer leitor do Maurício de Souza, “r” e “l” estão entre os mais traiçoeiros fonemas infantis. Ela repete as palavras. Lua olhando para cima. Rua olhando para baixo. Não há mais dúvidas. Marina fez sua primeira rima.
Do alto do seu um ano e dois meses, já é uma conhecedora desses dois substantivos. A rua, ela aprendeu primeiro. Ora diz apontando para janela, ora para a porta. Essa descoberta ainda me impressiona. Como ela percebeu que o lugar que observa de cima é o mesmo canto onde passa sacolejando com seu carrinho? Ambos, são tão diferentes para os sentidos, não oferecem a mesma vista, os mesmos sons, os mesmos cheiros. Ainda assim, ela notou que se trata do mesmo espaço, acessível por dois caminhos distintos: a porta e a janela.
A lua veio um pouco depois. Não moramos em uma cidade propícia a sair a noite com crianças. Foi uma daquelas luas precoces, que surgem por volta das cinco da tarde. A mãe apontou, ela repetiu. Alguns dias depois, aconteceu de novo no meu colo na porta de um bar, em um aniversário que se estendeu demais, diante de uma crescente. Por fim, repetiu o nome ao ver a lua desenhada em uma página de livro.
A associação feita na janela era inédita. Dizer palavras soltas, tudo bem, mas assim em sequência e ainda combinando sons e sentidos... Na qualidade de pai, sou por óbvio, suspeito para falar, mas não é um feito e tanto para um bebê? Uns anos atrás, enquanto trabalhava no roteiro para uma série documental sobre Noel Rosa, aprendi com o músico e pesquisador de linguística Luiz Tatit, que mais do que fazer uma canção funcionar, a rima tem a função de associar dois significados. Pense em “amor” e “dor” que aparecem juntos incontáveis vezes ou “andaime” e “Van Damme”, uma única vez, por responsabilidade dos Mamonas Assassinas.
As rimas ocupavam um papel fundamental nas culturas orais. Eram uma ferramenta importante para memorização dos conhecimentos, quando a maioria da população ignorava a escrita. Muitas histórias eram compostas em rimas e também os textos filosóficos e religiosos. Não havia distinção entre profetas e poetas. Ao ver a rima brotar espontânea na fala da minha filha, é natural que eu pense nela como uma forma de presságio. Um sinal para uma canção futura. A lua e a rua... Que papel cada uma terá na sua vida?
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