quinta-feira, 27 de junho de 2024

UM PAGODE AOS PÉS DA ESFINGE



Uma vantagem não muito comentada da vida contemporânea é poder se deliciar com as maravilhas da arqueologia, sem precisar encarar junto o sol sem misericórdia do deserto, a umidade do fundo das cavernas, ou as maldições e armadilhas dos templos ancestrais. Hoje, para ler poemas de amor escritos há mais de 3000 anos, em hieróglifos egípcios, basta uma tarde ociosa no google.   

Os poemas de amor do antigo Egito estão entre os primeiros textos conhecidos da humanidade. Você pode encontrar um PDF com os versos traduzidos para o inglês e algumas notas explicativas, com alguma facilidade e de graça. (Exemplos aqui e aqui). Ao todo são sete poemas, que falam de corações palpitantes, seios que roubam o brilho do sol, dedos que são como flores de lótus, uma semana de saudades que adoece o corpo.  Os versos permaneceram na escuridão por mais de 30 séculos. Até que na década de 1930, foram revelados em papiros encontrados nas escavações do sítio arqueológico de Deir Almedina, 600 quilômetros ao sul de Cairo.

As escavações em Deir Almedina provocaram uma pequena revolução nos estudos sobre o antigo Egito. O local abrigava uma antiga vila de artesãos e operários das pirâmides. Até então, a maioria dos vestígios encontrados do período era dos membros da elite, os faraós enterrados no Vale dos Reis, a alta nobreza, os grandes sacerdotes. Pouco se sabia sobre a vida do povo. Os objetos, cartas e documentos de Deir Almedina apresentaram registros importantes sobre a rotina de trabalho, a vida social, a alimentação e as formas de amar do egípcio comum, gente como a gente.

Quer um exemplo? Os historiadores acreditam que os poemas de amor eram um “registro escrito de versos mais populares em sua forma oral, entoados com acompanhamento de instrumentos musicais”. As poesias dos papiros, na verdade, eram a cópia de canções famosas. Músicas que faziam sucesso nas grandes festividades, ou nas resenhas improvisadas depois de um dia trabalho, regadas a muita cerveja (sim, a bebida já existia). As canções facilitavam os encontros e as declarações apaixonadas.  Decerto, ajudaram milhares de histórias de amor a se desenrolarem, tendo as dunas do deserto como testemunha. A  combinação de pé-na-areia, cervejinha e versinho romântico perto do ouvido, faz sucesso há muito mais tempo do que você imagina.

Alguns dos versos do antigo Egito poderiam fazer bonito no Beco do Rato ou no samba da Pedra do Sal.  Tem sofrência: “Sete dias que não vejo o meu amor/ E a doença me invadiu/ Sinto pesar os braços e as pernas/ Meu corpo se esqueceu de mim.” Só faltou completar com um “me ajudar a segurar essa barra que é gostar de você” ou com “vem logo, vem curar teu nego que chegou de porre lá da boemia”. Também tem promessas: “Vou fazer um festival pra minha deusa/ pra que aquele homem possa me ver passar, plena/ no meio da noite mais bonita”. Diz se não dá pra fazer um par com aquela do Zeca, “eu não sei se ela fez feitiço, macumba, ou coisa assim/ só sei que estou bem com ela e a vida é melhor pra mim”?  

E  claro, não podia faltar aquela cantada inspirada. “Mulher sem rival/ A mais bela entre as belas/ Parece a primeira estrela/ Que anuncia um ano de felicidade”. Repare na semelhança com o Almir Guineto de “tem veneno o teu perfume/ que me faz o teu refém/ teu sorriso tem um lume/ que nenhuma estrela tem.” 

Minha tradução deixa a desejar e as rimas egípcias se perderam com o tempo, mas o sentimento permanece o mesmo. Aos pés da esfinge, o pagode já rolava solto! 


quarta-feira, 19 de junho de 2024

HISTÓRIA DE UMA MALA


 

Basta uma breve leitura do relato de viajantes experimentados ou uma revisão atenta das normas técnicas da ANAC para perceber que há uma correlação clara entre o tipo de bagagem que uma pessoa escolhe carregar e a sua idade. Meus 35 anos de pai de família tardio e o provável frio de Montevidéu, que fazia de um casaco pesado um acessório imprescindível, eram razões suficientes para eu olhar para minha velha mochila vermelha de 45 litros com alguma desconfiança.

Era uma veterana, que já esteve em Paris e na Amazônia. Guardava resquícios da areia laranja do Saara e da esbranquiçada de Uyuni. Coube em armários de hostels suspeitos, chãos de ônibus, trens marroquinos, compartimentos de bagagem de companhias aéreas de baixo custo. Mas para 8 dias e 2 cidades, de uma viagem tranquila, de casal, sem deslocamentos mirabolantes, achei melhor recorrer ao conforto prático de uma mala de rodinhas de porte médio.

Em cima do armário de casa, havia exatamente o que eu precisava. Porém a mala necessitava de reparos. Procurei na internet um local apropriado para o conserto. Um deles me atraiu pela proximidade do bairro ou pela sonoridade do nome: “Málaga Malas”. Pela descrição,  também vendia malas usadas. A informação me preocupou um pouco, dado o evidente conflito de interesses entre consertar e revender a mesma coisa, mas decidi arriscar.

Fiz um alongamento curto e convenci minha rainha, a me acompanhar numa caminhada até a Glória.  A “Málaga Malas” fica numa rua sinuosa, em uma galeria semi-residencial, acompanhada de outros estabelecimentos, igualmente perdidos no tempo, como uma revenda de ouro e uma gráfica que restaura livros. Fomos atendidos pela proprietária, uma senhora, de traços caboclos e voz a rouca de décadas acumuladas de cigarro, que nos deu maiores detalhes:

__ Temos convênio com as principais companhias aéreas do mundo. KLM, Air France, American Airlines. Vocês vão em qual?

Notei uma ponta de decepção no seu rosto, quando respondemos que viajaríamos de Azul, mas ela soube disfarçar bem.    Analisou os defeitos da mala, deu o prazo e o preço, bem razoáveis. Disse que era preciso deixar um sinal, para garantir o serviço. Complementou:

 __ Pagamento só em dinheiro.

Enquanto isso, minha mulher se interessou por uma mala de bom aspecto, cujo preço era um terço do valor cobrado por uma nova. Seja porque os consertos e as vendas seguiam regras diferentes ou porque minha companheira aparenta ser uma pessoa bem mais atualizada do que eu, agora havia uma informação nova:

__ Aceitamos pix. 

__ Vamos levar amanhã, quando viermos buscar a outra.

__ Se você quiser, tem que ser hoje.

__ Por que?

__ Aqui, as coisas mudam muito rápido. De tarde, isso pode ser desmontado pra fornecer peça de reposição.   Essa mala, por esse preço, só agora.

Após alguns minutos de uma confusão com os comprovantes e a forma correta de adicionar contatos no whatsapp, o negócio foi fechado. 

__ Vocês ainda vão querer consertar a outra ou já vão deixar aqui de vez?

Confirmei o reparo. Puxei umas notas amarfanhadas do bolso da bermuda e paguei o sinal.  Retornamos no dia seguinte. A dona escutava pelo rádio (ou talvez por uma caixinha de som conectada a internet) o programa de um coach psíquico que ensinava métodos variados de energização.    Demorou a notar nossa presença. Talvez estivesse ocupada, mentalizando alguma coisa. Nos entregou a mala em perfeito estado.  Comprovamos a qualidade do serviço, deslizando a danada pelas calçadas irregulares que marcam a paisagem do Catete.

Na véspera do voo, arrumei a mala com camisas e cuecas limpas para todos os dias, um casacão, três agasalhos, dois livros, uma calça jeans e um par de tênis extras.  Contemplei o amplo espaço que me restava. No horizonte, se abria, uma nova forma de viajar.


quarta-feira, 12 de junho de 2024

AINDA UM BLOG?

 


Blogs e fitas cassete têm muita coisa em comum. São mídias esmagadas pela importância de outras maiores, do passado ou do futuro. Uma cassete não possui aquela seriedade bela dos objetos de museu que você encontra em um disco de vinil. Também não é imaterial, ilimitada e gratuita (ou quase gratuita) como a música que chega através da internet.  Um blog não é um livro. Um blog não é um tuíte (tudo bem, nem um tuíte é mais um tuíte). Enfim, são dilemas parecidos.

Elos perdidos, em geral, são formas embrionárias, que antecipam os desejos e as necessidades do futuro, sem atendê-los por completo. A fita cassete trazia uma música mais barata e que ocupava menos espaço, mas sua maior inovação era abrir uma possibilidade para a interação. Com uma fita virgem, era possível gravar músicas de diferentes discos ou CDs. Com a adição de um microfone, registrava-se a própria voz.  As fronteiras se apagavam, o amador e o profissional se misturavam no mesmo espaço.  Uma canção dos Beatles, o ronco do seu tio, Beethoven, um papagaio assobiando, Cartola, o que você pensa sobre a vida. De alguma forma, o impulso que levaria os nascidos no final do século XX a povoar o Youtube e os do início do século XXI a serem estrelas do Tik Tok já estava lá.   Só que com menos testemunhas.

Os blogs foram os primeiros sinais bem-sucedidos da cultura do eu que marca a Internet (e todo o resto da sociedade) até hoje. A ideia de um diário aberto para o mundo, tinha de nova o que tinha de simples. Seria a democratização da escrita, a quebra da hierarquia entre as opiniões, um veículo para a partilha de sentimentos, a válvula de escape para uma necessidade coletiva de expressão individual. Como tudo isso desembocou em correntes reacionárias no whatssapp, discussões sanguinárias no facebook e reality shows personalizados no instagram, não tenho a menor ideia.

Com a ascensão das redes sociais, os blogs perderam a importância. O novo formato, com seus likes, comentários e linhas do tempo, era bem mais eficaz em alimentar a ilusão de ser ouvido naqueles que tinham tanta urgência para dizer alguma coisa. Os que permaneceram, foram absorvidos pelas mídias anteriores. Passaram a escrever para sites, portais, a integrar a versão digital de jornais e revistas. O blog independente, individual se tornou um anacronismo, quase romântico. Algo deslocado de função, cuja existência é difícil de explicar, como as fitas cassete esquecidas em uma estante.

Ou essa pode ser apenas uma parte da história.  Há quem diga que os elos perdidos não carregam algo que desapareça com a sua extinção. Como as caudas da última vértebra, que somem nos embriões humanos. Os blogs podem ser ainda o espaço ideal para os formatos e as intenções de alguns textos. Efêmeros demais para os livros, lentos demais para as redes sociais. A janela perfeita para o voo curto de uma crônica. Ou para uma opinião, que quer parecer mencionada num bar e não proferida com alto falante em praça pública.  Um blog pode ter a medida exata da despretensão para uma história de viagem, a descrição de uma cena na rua do Catete, o comentário dos efeitos de um filme, um livro ou um jogo do Botafogo, o relato da maneira sutil que a minha mulher tem de me mandar parar de tagarelar, segundos antes dela adormecer?

Talvez não. Quem sabe, eu só quero relaxar após o expediente, com as fitas cassetes que moram na minha estante, como o japonês de meia idade do último filme do Win Wenders?




A PRIMEIRA RIMA

  Espremida entre o meu colo e a grade da janela, Marina se agita. Olha para baixo e grita: ruuuua. Uma, duas, três vezes. Depois olha para ...