Uma vantagem não muito comentada da vida contemporânea é poder se deliciar com as maravilhas da arqueologia, sem precisar encarar junto o sol sem misericórdia do deserto, a umidade do fundo das cavernas, ou as maldições e armadilhas dos templos ancestrais. Hoje, para ler poemas de amor escritos há mais de 3000 anos, em hieróglifos egípcios, basta uma tarde ociosa no google.
Os poemas de amor do antigo Egito estão entre os primeiros textos conhecidos da humanidade. Você pode encontrar um PDF com os versos traduzidos para o inglês e algumas notas explicativas, com alguma facilidade e de graça. (Exemplos aqui e aqui). Ao todo são sete poemas, que falam de corações palpitantes, seios que roubam o brilho do sol, dedos que são como flores de lótus, uma semana de saudades que adoece o corpo. Os versos permaneceram na escuridão por mais de 30 séculos. Até que na década de 1930, foram revelados em papiros encontrados nas escavações do sítio arqueológico de Deir Almedina, 600 quilômetros ao sul de Cairo.
As escavações em Deir Almedina provocaram uma pequena revolução nos estudos sobre o antigo Egito. O local abrigava uma antiga vila de artesãos e operários das pirâmides. Até então, a maioria dos vestígios encontrados do período era dos membros da elite, os faraós enterrados no Vale dos Reis, a alta nobreza, os grandes sacerdotes. Pouco se sabia sobre a vida do povo. Os objetos, cartas e documentos de Deir Almedina apresentaram registros importantes sobre a rotina de trabalho, a vida social, a alimentação e as formas de amar do egípcio comum, gente como a gente.
Quer um exemplo? Os historiadores acreditam que os poemas de amor eram um “registro escrito de versos mais populares em sua forma oral, entoados com acompanhamento de instrumentos musicais”. As poesias dos papiros, na verdade, eram a cópia de canções famosas. Músicas que faziam sucesso nas grandes festividades, ou nas resenhas improvisadas depois de um dia trabalho, regadas a muita cerveja (sim, a bebida já existia). As canções facilitavam os encontros e as declarações apaixonadas. Decerto, ajudaram milhares de histórias de amor a se desenrolarem, tendo as dunas do deserto como testemunha. A combinação de pé-na-areia, cervejinha e versinho romântico perto do ouvido, faz sucesso há muito mais tempo do que você imagina.
Alguns dos versos do antigo Egito poderiam fazer bonito no Beco do Rato ou no samba da Pedra do Sal. Tem sofrência: “Sete dias que não vejo o meu amor/ E a doença me invadiu/ Sinto pesar os braços e as pernas/ Meu corpo se esqueceu de mim.” Só faltou completar com um “me ajudar a segurar essa barra que é gostar de você” ou com “vem logo, vem curar teu nego que chegou de porre lá da boemia”. Também tem promessas: “Vou fazer um festival pra minha deusa/ pra que aquele homem possa me ver passar, plena/ no meio da noite mais bonita”. Diz se não dá pra fazer um par com aquela do Zeca, “eu não sei se ela fez feitiço, macumba, ou coisa assim/ só sei que estou bem com ela e a vida é melhor pra mim”?
E claro, não podia faltar aquela cantada inspirada. “Mulher sem rival/ A mais bela entre as belas/ Parece a primeira estrela/ Que anuncia um ano de felicidade”. Repare na semelhança com o Almir Guineto de “tem veneno o teu perfume/ que me faz o teu refém/ teu sorriso tem um lume/ que nenhuma estrela tem.”
Minha tradução deixa a desejar e as rimas egípcias se perderam com o tempo, mas o sentimento permanece o mesmo. Aos pés da esfinge, o pagode já rolava solto!


