quarta-feira, 19 de junho de 2024

HISTÓRIA DE UMA MALA


 

Basta uma breve leitura do relato de viajantes experimentados ou uma revisão atenta das normas técnicas da ANAC para perceber que há uma correlação clara entre o tipo de bagagem que uma pessoa escolhe carregar e a sua idade. Meus 35 anos de pai de família tardio e o provável frio de Montevidéu, que fazia de um casaco pesado um acessório imprescindível, eram razões suficientes para eu olhar para minha velha mochila vermelha de 45 litros com alguma desconfiança.

Era uma veterana, que já esteve em Paris e na Amazônia. Guardava resquícios da areia laranja do Saara e da esbranquiçada de Uyuni. Coube em armários de hostels suspeitos, chãos de ônibus, trens marroquinos, compartimentos de bagagem de companhias aéreas de baixo custo. Mas para 8 dias e 2 cidades, de uma viagem tranquila, de casal, sem deslocamentos mirabolantes, achei melhor recorrer ao conforto prático de uma mala de rodinhas de porte médio.

Em cima do armário de casa, havia exatamente o que eu precisava. Porém a mala necessitava de reparos. Procurei na internet um local apropriado para o conserto. Um deles me atraiu pela proximidade do bairro ou pela sonoridade do nome: “Málaga Malas”. Pela descrição,  também vendia malas usadas. A informação me preocupou um pouco, dado o evidente conflito de interesses entre consertar e revender a mesma coisa, mas decidi arriscar.

Fiz um alongamento curto e convenci minha rainha, a me acompanhar numa caminhada até a Glória.  A “Málaga Malas” fica numa rua sinuosa, em uma galeria semi-residencial, acompanhada de outros estabelecimentos, igualmente perdidos no tempo, como uma revenda de ouro e uma gráfica que restaura livros. Fomos atendidos pela proprietária, uma senhora, de traços caboclos e voz a rouca de décadas acumuladas de cigarro, que nos deu maiores detalhes:

__ Temos convênio com as principais companhias aéreas do mundo. KLM, Air France, American Airlines. Vocês vão em qual?

Notei uma ponta de decepção no seu rosto, quando respondemos que viajaríamos de Azul, mas ela soube disfarçar bem.    Analisou os defeitos da mala, deu o prazo e o preço, bem razoáveis. Disse que era preciso deixar um sinal, para garantir o serviço. Complementou:

 __ Pagamento só em dinheiro.

Enquanto isso, minha mulher se interessou por uma mala de bom aspecto, cujo preço era um terço do valor cobrado por uma nova. Seja porque os consertos e as vendas seguiam regras diferentes ou porque minha companheira aparenta ser uma pessoa bem mais atualizada do que eu, agora havia uma informação nova:

__ Aceitamos pix. 

__ Vamos levar amanhã, quando viermos buscar a outra.

__ Se você quiser, tem que ser hoje.

__ Por que?

__ Aqui, as coisas mudam muito rápido. De tarde, isso pode ser desmontado pra fornecer peça de reposição.   Essa mala, por esse preço, só agora.

Após alguns minutos de uma confusão com os comprovantes e a forma correta de adicionar contatos no whatsapp, o negócio foi fechado. 

__ Vocês ainda vão querer consertar a outra ou já vão deixar aqui de vez?

Confirmei o reparo. Puxei umas notas amarfanhadas do bolso da bermuda e paguei o sinal.  Retornamos no dia seguinte. A dona escutava pelo rádio (ou talvez por uma caixinha de som conectada a internet) o programa de um coach psíquico que ensinava métodos variados de energização.    Demorou a notar nossa presença. Talvez estivesse ocupada, mentalizando alguma coisa. Nos entregou a mala em perfeito estado.  Comprovamos a qualidade do serviço, deslizando a danada pelas calçadas irregulares que marcam a paisagem do Catete.

Na véspera do voo, arrumei a mala com camisas e cuecas limpas para todos os dias, um casacão, três agasalhos, dois livros, uma calça jeans e um par de tênis extras.  Contemplei o amplo espaço que me restava. No horizonte, se abria, uma nova forma de viajar.


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