quarta-feira, 24 de julho de 2024

UNDIÚ (parte 2)

 



Dinorah era professora e uma das melhores percussionistas do Recôncavo Baiano. Seus olhos faiscavam toda vez que discutia sobre música. Podia permanecer por horas, indo e voltando no mesmo assunto, até que a outra pessoa concordasse com ela, como se ensinasse um toque simples para um aluno teimoso e ruim de ouvido. Ligou o Spotify na caixa de som e pôs: 

Undiú. 

Logo, a voz pequena e as batidas do violão do João Gilberto ocuparam todo o espaço do quarto. Repetiam-se em movimentos circulares, que seriam parecidos com as ondas do mar, se as ondas do mar pudessem apenas banhar os corpos sem jamais afogar ninguém.  Dinorah dizia:

—  O João Gilberto aprendeu ioga, no final da década de 1960, quando ele morava no México. Foi iniciado por uma discípula do guru indiano Yogananda. João leu o livro de Yogananda, “Autobiografia de um Iogue” e se apaixonou. Ele já era um iogue, antes de conhecer qualquer coisa sobre a ioga.

Eu pus o copo do lado da cama e me inclinei com mais profundidade nos travesseiros, na posição do cachorro deitado. Tocaram as músicas:

Falsa Baiana

Estate

Entre uma canção e outra, Dinorah continuava a falar:

—  Você sabe o que quer dizer aquele OMM... de quem medita? É o ruído do espaço vazio, um som anterior ao tempo, presente em todos os outros sons. O bim bom, do violão de João Gilberto é o OMM da música brasileira. A batida que contém todos os ritmos que vieram antes dela. Um big bang feito de trás para frente. Você entende Adamastor?

Eu sei que vou te amar

—  Mas e o canto?

Pronunciei a frase com os olhos fechados, quase sem me dar conta do que dizia, como se as palavras viessem de algum outro lugar. Dinorah nem reparou.

—  Ele canta como alguém que medita. Melhor, como alguém que respira durante a meditação. A música e as palavras passam por ele, como se ele não estivesse lá. 

Louco 

— Você reclamou da ausência do significado das palavras.  Vamos pegar outro artista como exemplo. Bethânia, só pra continuar na Bahia. Cada palavra que ela canta tem um peso próprio. O verbo ganha carne e drama, reza e tesão.  “Foi tudo tão de repente. Eu não consigo esquecer.” É uma frase qualquer. Mas com ela vira uma história de amor enlouquecida, cheia de vida e angústia. A palavra se transforma em Bethânia. Com o João acontece o contrário. Se uma canção pudesse existir sem a presença do ser humano, seria assim...

É preciso perdoar

— ... a palavra só tem um significado possível. O significado do som.

Os antigos vedas indianos ensinavam que através do sonho era possível alcançar um entendimento superior ao da consciência. No sonho, livre das ilusões da matéria, o ser poderia se perceber mais próximo da sua verdadeira natureza, inseparável da natureza divina. Dentro do quarto, uma onda recuava e voltava, em um mesmo ritmo. Era guiada pelo som de mil tambores. Os tambores viraram um só, depois, perderam a substância. Transformaram-se numa batida sem tambor. A onda cobriu todo o meu corpo. Mas o mar, já não era mar, era ar. O ar que estava dentro de mim era o mesmo que o ar que estava fora. Então, acho que compreendi o que Dinorah queria dizer. 

É uma pena estar prestes a acordar. 


Leia: Undiú (parte 01)

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