Ela gostava de falar, quando meus olhos já estavam fechados. Desconfiava que não era apenas pela diferença entre nossos horários de sono, óbvia após poucas noites dormindo juntos. Eu adormecia logo depois da meia-noite. Ela seguia zanzando pelo quarto, entediada ou ansiosa, bebendo o resto da garrafa de vinho, até cair num sono profundo às três ou quatro horas da manhã. Mas não creio que seja essa a razão para que ela desejasse falar tanto de madrugada. Acho até que, no fundo, Dinorah preferia que eu não respondesse. Queria mesmo era que eu permanecesse dormindo. Pensava que assim poderia influenciar meus sonhos com as suas palavras e a sutil melodia da sua voz.
— A-da-mas-tor.
Ela adorava pronunciar cada sílaba do meu nome, realçando tudo o que ele tinha de estranho. Adamastor, o gigante que se revoltava contra Zeus e era transformado num rochedo horrendo. Meu pai era um grande fã de mitologia. Pena nunca ter paciência para ler as histórias até o final.
— O que foi?
— Por que você não gosta de João Gilberto?
— Por que você acha que eu não gosto de João Gilberto?
Retruquei sem abrir os olhos, nem pronunciar direito as palavras, rezando para que aquela conversa tivesse vida curta. Mais eficaz do que minhas preces, seria não ter respondido com outra pergunta.
— Lembra quando meu Spotify estava tocando e o algoritmo escolhia várias músicas do mesmo artista. Teve Tim Maia Tim Maia Tim Maia. Gal, Gal, Gal. Bethânia, cinco vezes. Quando, entrou João Gilberto você trocou a música. Foi a única vez que você se levantou.
— Tive vontade de ouvir Martinho da Vila.
— Mas o que você não gosta no João Gilberto?
— Nada, ué. Só queria ouvir outra coisa.
— Tem certeza? Não estou te recriminando. Só curiosidade mesmo.
Já de olhos abertos, recostado no travesseiro, segurando um copo, que acabava de ser preenchido com cerveja, me vi forçado a pensar naquela questão, pela primeira vez. Por que, cacete, eu não gostava do João Gilberto?
— Acho que ele canta todas as músicas do mesmo jeito
— Como assim?
— Parece que o está na letra não importa. Tanto faz se é o “pato vinha cantando alegremente” ou “eu sei que vou te amar por toda a minha vida”. Ele canta igual, como se o sentimento das palavras não existisse.
— Eu discordo, mas entendo. É uma opinião bem previsível.
— Você parece ofendida. Não sabia que gostava tanto de Bossa Nova.
— Eu não gosto de bossa nova. Gosto do João Gilberto.
— Qual é a diferença?
— A bossa nova queria fazer um som limpinho e confortável, bem coisa de carioca.
Respondi a ofensa com um agrado e comecei a cantarolar “Baiana” do Emicida pra ela. Dinorah prosseguiu:
— O João Gilberto não é nada confortável. Ele inventou um jeito meio hindu, meio budista de tocar samba que só dá certo porque é estranho.
— Por isso que ele faz tanto sucesso no Japão?
— Por isso que você acha que ele canta todas as músicas do mesmo jeito. Porque presta atenção nas coisas erradas.
Leia: Undiú parte 2
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