sexta-feira, 12 de julho de 2024

AS MORTES E OS BRASIS DE ASSIS VALENTE

 




O que os versos: “Brasil, esquentai vossos pandeiros/ iluminai os terreiros/ que nós queremos sambar”;  “cai cai balão/ aqui na minha mão”; “beijei na boca de quem não devia/peguei na mão de quem não conhecia/ dancei o samba em traje de maiô/ e o mundo não se acabou” e “eu pensei que todo mundo  fosse filho de papai noel”  têm em comum? Ora, todos saíram da mesma cabeça, são filhos do mesmo letrista, o baiano Assis Valente.

Dá até para dizer com uma dose de lirismo e outra de cinismo, que o Brasil, ou pelo menos a versão mítica do país, estava tão presente no coração de Assis, que quando ele quis se despedir da vida, escolheu um símbolo nacional como palco. No dia 13 de maio de 1941, Valente se atirou do alto do Corcovado, de costas, olhando nos olhos do Cristo Redentor. Não morreu.

A maior parte de sua obra foi composta nas décadas de 1930 e 1940. Coincide no tempo e no espírito com a primeira era Vargas, época em que a formação de uma identidade nacional, da criação de uma resposta unificada para a pergunta “o que significa ser brasileiro?” era uma obsessão para sociólogos, artistas, escritores, além de todo o departamento de propaganda do Estado Novo.

A ideia de uma brasilidade, festiva, mestiça e potente era, claro, um mito como são todas as ideias de nação, todas as ideologias. Mascarou (mascara?) muitas dores. Produziu (produz?) muitas belezas. Entre elas, as composições de Assis.  Está presente nas músicas infantis, tão repetidas que parecem de autoria coletiva, como a junina “Cai cai balão” e a natalina “Boas Festas”. É a marca principal dos seus belos sambas-exaltação, como “Brasil Pandeiro” e “Alegria”

Talvez seja ainda mais forte nas músicas que querem apenas ser crônicas de sua gente, de sua época.  Histórias saborosas, vívidas e profundamente brasileiras, como a da mulher (ou talvez do homem) que cai na farra com quem não devia, quando escuta o anúncio do fim do mundo em “E o mundo não se acabou...”. Da mãe solteira do morro que enfrenta o olhar inquisidor do agente do censo, em “Recenseamento”. “Quando viu minha mão sem aliança/ e olhou para a criança que no chão dormia/ perguntou se meu moreno era decente/ se ele era do batente ou era da folia.”  E ela responde, com altivez, que seu homem era os dois, fuzileiro e batuqueiro, para, em seguida, enumerar tudo que o Brasil lhe deu: o Pão de Açúcar, o céu azul, os feriados. Há também o pai de família de “Camisa Listrada”, sério, com anel de doutor, mas que durante o carnaval “se fantasia de Antonieta e vai dançar no Bola Preta até o sol raiar”, com a camisola da esposa e uma saia feita da cortina de veludo arrancada da sala de casa. 

(Aliás essa música me lembra muito o meu avô, que sempre sumia durante os quatro dias de carnaval e destruiu o vestido de noiva da minha avó, ao usá-lo, no Bloco das Piranhas, por anos seguidos. A lenta desaparição do vestido de noiva no corpo do marido, ao longo de vários carnavais, daria com uma pitada distorcida de imaginação uma bela crônica de Nelson Rodrigues.)

Se a obra de Assis Valente continha uma brasilidade idealizada, sua vida foi marcada por uma experiência bem mais brutal de país. Ele nasceu em 1911, em Santo Amaro, na Bahia de “mucama com feitor”, como cantaria outro santo-amarense mais famoso. Seu pai era um homem branco, de classe média e a mãe, uma mulher negra, que trabalhava como empregada na casa da família. A união não era reconhecida e o menino era rejeitado. Na infância, enquanto recitava poemas na feira, foi raptado e oferecido a uma família rica, “por ser muito inteligente”. Era tratado como empregado. Anos depois, conseguiu reencontrar sua antiga família. O tio, dentista, o ensinou a profissão de protético, a ser artesão das próteses dentárias.  Exerceu o ofício por toda a vida. Jamais se sustentou apenas com a música.

Chegou ao Rio, em 1930, e foi acolhido por Heitor dos Prazeres e outros sambistas da Mangueira. Começou a mostrar suas canções e a ser gravado.  Virou um dos compositores favoritos de Carmem Miranda. Casou-se. Mas, de hábitos extravagantes, vivia cheio de dívidas e era viciado em cocaína. Infeliz no casamento, era atormentado, alguns diziam por paixão não correspondida por Carmem Miranda, outros pelo esforço de manter oculta sua paixão por outros homens. Sua filha tinha dois meses, quando ele cometeu o desatino de se jogar do Corcovado. Foi salvo pelas árvores. Ou, como ele gostava de dizer, pelo olhar do Cristo.

Não a toa, nas canções de Assis, quase sempre, há uma sombra de tristeza pairando sobre a alegria. É a iminência da destruição que libera o indivíduo para realizar os seus desejos em “E o mundo não se acabou...”. A tristeza do povo é o que faz a gênese do samba em “Alegria”, “minha gente, era triste e amargurada/inventou a batucada pra deixar de padecer”. E sabe-se lá o que vai acontecer com a nossa música, depois que “o Tio Sam aprender a tocar pandeiro para o mundo sambar” em “Brasil Pandeiro”. Até em “Boas Festas”, canção de natal,  Papai Noel, ou “com certeza já morreu”, ou “então, felicidade, é brinquedo que não tem.”

A conciliação entre esses dois impulsos opostos, o de lutar contra o apagamento de dores, passadas e presentes, e encontrar forças para vivenciar alguma forma de alegria coletiva, marca até hoje as disputas entre as diferentes formas de brasilidade. Uma tensão que, às vezes, pode ser insuportável. Dezessete anos depois da tentativa de suicídio no Corcovado, Assis Valente engoliu veneno, diluído em guaraná e morreu em um banco de praça na Glória.    Quem sabe a gente tem um pouquinho mais de sorte? Salve o prazer, salve o prazer... 

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